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Textos

Atualizações e entrevistas

Texto da exposição Carnação Em sua primeira exposição individual, Walter Pimentel apresenta um conjunto de pinturas impactantes, desenvolvidas entre 2023 e 2024, que interessam ao olhar e ao pensamento tanto pela elaborada fatura, quanto pela profundidade e complexidade de seus significados. Resultadas do decantamento de um processo criativo orientado pelo saber teórico, pela vivência espiritual, pela experimentação técnica e pela subjetividade adensada, suas obras fazem da fotografia de arquivo base para a construção da pintura figurativa, sublinhando a importância desta no cenário de arte contemporânea. A palavra carnação, que dá título à exposição, faz referência à técnica acadêmica que simula a representação da pele humana em pinturas tradicionais e mesmo em obras sacras tridimensionais. A finalidade é utilizar os meios pictóricos para imprimir sobre a criação artística uma aparência semelhante à da vida pulsante, mimetizando a natureza. Entretanto, na pintura de Walter Pimentel, a carnação se dá por outras técnicas e com outras intenções: busca configurar a carne da própria pintura que dá vida às figuras animadas por intensas pinceladas e por depósitos de massas espessas de tintas. Durante o processo de pesquisa de sua linguagem e de invenção de sua poética, no embate com a escultura e com a técnica do entalhe, ele descobriu a possibilidade de criação dessa carne por meio da pintura. Criou uma carne singular consistentemente assentada sobre a superfície do quadro, com musculatura vigorosa feita de cores iluminadas por fontes de luz desconhecidas que parecem ter origem espiritual. Seus contrastes entre claros e escuros criam de maneira singular uma plasticidade suntuosa e barroca. As figuras encarnadas nas pinturas de Walter Pimentel derivam de um arquivo de fotografias de familiares que ele utiliza como motivo. Trata-se de imagens feitas entre as décadas de 1930 e 1970, registradas em Palmelo, cidade do interior goiano que nasceu em torno de um templo espírita fundado em 1929. São retratos, cenas com crianças, grupos de mulheres, imagens de festas e de obituários, que ao serem refeitos na pintura, passam por transformação radical mudando seus estatutos de imagens para figuras, adquirindo vida independente da fotografia. Na transposição para a pintura, não interessa ao artista rever os dados biográficos das pessoas retratadas; e nas composições mais complexas, além dos retratos, insere outras fontes visuais — ilustrações do francês Gustav Doré para a Divina Comédia, por exemplo — dilatando o grau de estranheza das enigmáticas pinturas que ele cria. Ao mesmo tempo distantes e próximas, suas figuras mostram vitalidade e provocam a vibração das células das nossas memórias, individual e coletiva, ativando as batidas afetivas dos nossos corações. Walter Pimentel extravasa os limites do suporte ao aplicar espuma expandida para deformar e dilatar as bordas da tela. Trabalha com grande quantidade de tinta, seja guache aplicado sobre papel ou tela, seja a óleo. A ela, acrescenta pó de mármore e óleo de linhaça, abundantemente aplicados sobre a superfície, potencializando a elasticidade, o volume, a densidade e o peso da matéria pictórica. Com isso, cria uma espécie de relevo, modelando os rostos das figuras e os detalhes dos elementos presentes ao fundo. Passando por uma fase de amadurecimento técnico e de aprofundamento poético, trabalhando com afinco e seriedade, Walter Pimentel é, em Goiás, o mais refinado pintor de sua geração; sua pintura, ainda que comprometida com os enigmas de si mesma, penetra em nossa mente como reflexo do espírito do nosso tempo. Divino Sobral Curador

Conversa entre Lina Cruvinel e Walter Pimentel. LC Walter, pra gente iniciar essa entrevista, pensei em uma pergunta que surgiu quando a gente começou a conversar sobre o seu trabalho. Ao observar suas pinturas, eu fiquei curiosa para entender como a feição das pessoas que você retrata surge. Eu entendo que você utiliza um grande acervo de fotografias familiares, como referências imagéticas, para capturar o assunto das suas pinturas. Mas, como uma vez você me colocou, não necessariamente você está retratando a pessoa fotografada. Desse modo, eu me pergunto, quem são essas pessoas que você retrata? Eu falo assim porque, ao olhar para os seus quadros, eu sinto que estou diante de alguém. WP No princípio, elas começam muito parecidas com as imagens das fotografias, só que com o tempo elas começam a se distanciar. Não sei explicar, parece que elas adquirem uma feição própria. Às vezes eu uso outras imagens de outras pessoas para determinar a feição delas, misturo os rostos. Só que, conforme a pintura vai avançando, vou colocando coisas minhas, minhas impressões, para fazer a figura parecer que está me olhando. Também para a pintura ficar mais forte. É um processo de construção, para tentar montar um rosto ali. LC É interessante isso que você falou: o rosto retratado te olhar de volta. Pensar que esse olhar desse outro está te observando enquanto você o observa e o constrói. WP Isso. Eu gosto de pensar que sou um observador que é observado. Eu gosto de saber que a figura está ali e sabe o que está acontecendo. E aí eu vou montando relações com ela. Não é uma coisa unilateral, é algo construído dos dois lados. LC Você estabelece um diálogo com a sua pintura? A sua pintura tem uma voz? WP Em certa medida, não. Na verdade, ela é mútica. Mútico é uma pessoa que se recusa a falar. Mas ela sabe o que está acontecendo. LC Só que ela não responde. WP Isso. Pintura para mim é silêncio. LC É impossível ao espectador deixar de notar os olhos nas suas pinturas. Parece que as pessoas retratadas possuem um olhar vago e distante. É como se elas enxergassem algo em quem as olha, causando um certo desconforto. E você já falou sobre seu processo de pintar, considerando que a imagem está te olhando. Então, de fato, há um olhar do outro. Você sabe o que os seus retratos olham e o que eles buscam com esse olhar? WP É um pouco difícil. Eu também não sei. Poderia falar que elas estão me olhando primeiro mas eu acho que a coisa começa a vir em outra dimensão. Parece que, como eu gosto de fazer como se elas tivessem consciência, eu penso que às vezes elas estão... Não sei. Essa pergunta é bem difícil. O que elas estão olhando? De repente, esse olhar delas é uma construção de um pensamento pictórico que às vezes até para mim fica difícil de explicar porque nem eu sei. Enquanto estou pintando, não sei definir algumas soluções. A pintura começa a caminhar em um rumo que eu desconheço. Em determinado momento as coisas estão indo do jeito certo, só que a pintura ganha vida própria e começa a me apontar para outros lugares. Eu penso que o olhar dessas figuras segue um ritmo que foge do meu controle. Eu não sei, mas a pintura parece saber. Parece esquizofrênico dizer que a pintura tem vida própria mas não é. A pintura é um centro cognitivo. É um lugar onde os pensamentos são processados. Não é exagero falar que ela tem uma vida própria. Não é que ela tenha consciência, mas ali as coisas vão e são processadas. Eu penso que esse processo é da esfera intuitiva. Por isso, na consciência fica um pouco nebuloso. LC Há muito mistério na sua pintura. O que é muito provocativo e gera perguntas: quem são essas pessoas, o que elas observam, o que elas pensam, de onde elas vêm e onde elas estão. Eu me pergunto muito onde elas estão. Mas, antes de tudo, o que mobilizou você a retratar pessoas? WP Eu penso que foi a experiência de descobrir esses retratos de família. Deixa eu pensar um pouquinho. Na verdade, esses retratos conseguiram dar objetividade ao meu trabalho, que antes era abstrato. A experiência de descoberta desses retratos foi muito forte, foi marcante na minha vida. Sem eles, eu só conseguia fazer pintura abstrata. A pintura abstrata tinha toda aquela experiência, só que ficava contida ali, retida. Ninguém conseguia acessar. E o abstrato já remetia a outras coisas que não tinham nada a ver com o que eu estava pensando. E descobrir o retrato me faz refletir, me instigou mais, acabou se tornando uma forma de dar corpo para as minhas questões subjetivas. LC É interessante observar como você constrói as cores das suas pinturas. Eu sinto que essas pessoas retratadas são colocadas nas profundezas dos pretos e cinzas cromáticos que você cria. Elas habitam um lugar que o espectador não consegue identificar muito bem. Ou seja, o fundo das suas pinturas é mais abstrato. E essas pessoas, essas imagens retratadas, elas surgem desse lugar profundo e aparecem com uma aura inebriante e até mesmo fantasmagórica. Elas aparecem brilhando intensamente com cores muito saturadas que você traz. E esse contraste brusco, de certo modo, permite enxergar a presença desse alguém que habita esse espaço pictórico. WP Lembrei de uma reflexão que eu tive há muito tempo atrás, quando eu ainda estava começando a pensar nesses retratos. Eu queria pensar em pintar o sentimento de ausência. Mas ausência, para mim, só faria sentido se eu sentisse falta de alguma coisa que estava ali, senão ficaria algo sem sentido, como uma espécie de vão. Se eu pinto só um vazio, às vezes não vai ter sentido para mim, mas se tinha alguma coisa, e de repente essa coisa sai de cena, aí eu sinto o vazio. Então, eu pensei, se eu fizer uma presença muito forte, essa ausência seria sentida depois. Foi o que eu pensei na época, e também pensei “vou botar gente aí”. Mas é engraçado, as cores escuras, elas vêm no final. Eu começo com as cores claras ali, a cor se inicia até um pouco suave, mas de repente aparece um preto, aparece uma cor escura, e toda aquela cor clara que estava até um pouco apagada, aquela massa clara, parece que ela salta, né? Se destaca na tela. Quando eu coloco a cor escura, parece que a cor clara sai da tela e começa a habitar um outro lugar, e o espaço ali está só sustentando. O contraste, na verdade, quando eu jogo uma cor muito escura para essa cor clara saltar, é com esse objetivo. Quando eu estou pintando, há uma sensação muito importante, eu preciso sentir as coisas enquanto estou pintando. LC Me fale um pouco sobre a materialidade que você coloca na pintura. Qual é o seu interesse em trazer esse material protuberante que eu sei que não é só tinta e que a gente sente muito forte também esses volumes acentuados ao redor da pintura, também um tanto no corpo humano, e eu acho que muito também nesse fundo. Por que trazer esse volume para a pintura? WP Primeiro, o interesse na cor. No início, quando eu pintava com a tinta bem diluída, às vezes bem ralinha, a pintura ficava só ali na superfície. Quando a pintura estava molhada, eu falava, beleza, só que quando secava, sumia tudo aquilo. Quando eu uso a tinta muito grossa, parece que ao secar não dá esse rebaixamento. A cor continua falando ali. Eu também gostava muito, por exemplo, de misturar as cores na paleta, e eu falava, nossa, não consigo botar isso na tela. Agora eu estou conseguindo, sabe? Deixar uma cor meio suja ali, por exemplo, um branco sujo de rosa, ou sujo de verde, e essa materialidade densa me dá a possibilidade de colocar essa cor aí. E o volume dá uma sensação mais tátil, e ele como que soma a dimensão mental que a imagem traz. Porque a imagem é um monte de manchas e traços no plano bidimensional, só que você projeta conteúdos que você já conhece em cima da imagem. Essa projeção mental me interessa muito, e quando a imagem é tátil, você também remete ela ao aqui e agora. LC Como é a sua relação com a pintura? É difícil pintar? Como são seus encontros diários com a pintura no seu ateliê? WP Para mim, não é nada difícil pintar. Se deixar eu pinto o tempo inteiro. O sentimento que a pintura traz, me parece, é um prazer mesmo. Prazer de fazer uma figura forte, de fazer uma pintura forte. É um prazer de dar forma. Só que tem as negociações que eu tenho que fazer. Mas hoje eu sinto que estou com mais precisão. Eu já peguei um pouco de intimidade com a pintura. Antes era difícil. Eu raspava muita tinta, desperdiçava muito material. Mas hoje eu já peguei um pouco mais de intimidade. Está menos sofrido, mas às vezes eu preciso ter paciência. LC Fugindo um pouco da abordagem subjetiva de seu trabalho, falemos sobre a tinta guache, técnica que você utilizou nos trabalhos apresentados na exposição do Trampolim. Sei que a sua técnica principal é a tinta a óleo, então foi uma boa surpresa encontrar suas pinturas feitas em outro suporte e com uma tinta diferente. WP A tinta guache tem uma diferença muito importante do óleo. O óleo escurece o pigmento, e você consegue ter uma profundidade. Com o guache, não. Como ela não escurece demais o pigmento, então eu tenho mais ou menos o aspecto de pigmento seco, né? Como não está tão escuro, ele permite algum grau maior de leveza. No guache fica uma coisa um pouco mais limpa, principalmente para os pigmentos especiais, como os iridescentes e perolados que no óleo acabam amarelando, e a materialidade do óleo deixa neles um efeito pesado, mais ou menos como se fosse terra, uma coisa bem arenosa. No guache eu posso explorar outras características desses pigmentos. Os outros pigmentos, no geral, eles acabam funcionando melhor com o óleo. O óleo dá intensidade, porém é mais pesado. Para os pigmentos especiais, metálicos e perolados, o guache acaba sendo mais interessante por conferir mais leveza, evidenciando melhor esses pigmentos. Eu gosto de ter essa possibilidade e também me interessa o aspecto e materialidade seca do guache. A paleta acaba ficando diferente, mas é o mesmo processo, porém com outra articulação de pensamento. LC O que você pensou quando propôs apresentar esse conjunto de pinturas para a exposição do Trampolim? Houve um fio condutor para a escolha desses trabalhos? WP Foi o interesse em apresentar os trabalhos realizados com guache. Em quase todas as exposições que eu participei, expus muitas pinturas a óleo. A tinta guache é importante para o meu processo e eu achei que seria interessante mostrar outros resultados da minha pesquisa, diferentes daqueles que já mostrei com as minhas pinturas a óleo. LC Maravilha, Walter! Agradeço pela oportunidade de acessar um pouco mais do seu processo artístico e desejo que suas pinturas continuem reverberando.

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